Fragmento de Jabor
13:01
Um mistério em minha
vida
Já escrevi sobre meu avô, e também sobre minha mãe. As pessoas me dizem:
“E seu pai? E seu pai?” Meu pai foi um mistério em minha vida; não nos
comunicávamos bem, inibidos um com o outro. Meu pai era o perigo dos castigos,
o Supremo Tribunal que julgava meus erros. Por isso, ao escrever esse artigo,
sinto seu olhar por cima do meu ombro. Sempre quis ser aprovado por ele,
receber um elogio, um beijo espontâneo que nunca vinha. Ele parecia saber de um
crime que eu cometera, mas não dizia qual era. Eu sofria: “O que foi que eu
fiz?” Meu pai não ria, como se o riso fosse um luxo, mas eu me empolgava quando
ele chegava num avião de combate, coberto de dragonas douradas no uniforme da
Aeronáutica, ele, meu herói que conquistara o Pico do Papagaio como jovem
alpinista e que fazia acrobacias de cabeça pra baixo nos aviõezinhos do Correio
Aéreo. Quando peguei coqueluche, ele me levou num avião bimotor a quatro mil
metros de altura, pois diziam que isso curava a tosse renitente. O avião subiu
com meu pai pilotando, um sargento e minha mãe num casaco de pele com o cabelo
preso num coque alto chamado “bomba atômica”, cruel homenagem da moda à
destruição de Hiroshima. De repente, a porta do avião se abriu a quatro mil
metros e eu teria sido sugado para fora não fosse a rápida ação do sargento.
Até hoje, não sei se isso realmente aconteceu, mas meu pai sempre me
trazia fantasias de extinção. Ele era um árabe alto, nariz de águia, bigodinho
ralo, cabelo luzente de Glostora, óculos Ray-ban, sapatos de borracha da Polar.
Hoje, entendo que ele queria fazer de mim um homem pela severidade implacável,
silêncios indecifrados, olhares acusadores (de quê, meu Deus?). Hoje sei que
ele queria de mim um homem, dando-me um exemplo de espartana resistência, de
chorar sem lágrimas. Claro que virei artista, por formação reativa, claro que
enquanto ele me deu um livro nunca aberto sobre mineração de carvão eu ia ler
Rimbaud e escrever poesias. Se eu bobeasse, podia estar hoje cantando boleros,
com o codinome Neide Suely. Minha vida foi se pautando para ser tudo aquilo que
ele não era – uma maneira de obedecê-lo em revolta, de competir com ele sem
arriscar a castração, o pau cortado. Ele era moralista? Eu defendia sacanagens
e palavrões. Ele era da UDN? Entrei para o PCB aos 18 anos.
Então, comecei a despertá-lo da letargia desatenta a mim, provocando-o,
esculhambando americanos e militares, culpando a Aeronáutica pelo suicídio de
Getúlio. Aí, conseguia berros à mesa do jantar, com minha mãe pálida, sussurrando:
“Olha os vizinhos!” Isso era uma forma de tê-lo vivo diante de mim.
Queriam-me diplomata? Ah... hoje eu poderia ser um pobre itamarateca
alcoólatra... Fui ser nada, maluco, comuna da UNE; depois, por acaso, acabei
cineasta... O tempo foi passando. Papai aposentou-se cedo demais e aquele
projeto de “picos de papagaio”, de aviões em parafuso, de heroísmo guerreiro
virou um silêncio aterrador no apartamentozinho de Copacabana, onde o tempo
parecia parar. Entre as poltronas dos anos 40, entre os vasos de flores de
minha mãe, a presença de meu pai era quase abstrata, lendo revistas, vendo TV
de tarde, de pijama, em meio a minhas visitas, quando eu tentava alguma coisa
que mudasse aquela paralítica tragédia, aquele relógio do avô que batia o
pêndulo em vão.
Todos os dias eram iguais; só minha mãe mudava, cada vez mais perto da
senilidade, visitando a médium “linha branca” que lhe dava conselhos com voz
grossa de caboclo. Eu queria que alguma coisa acontecesse, queria vê-los dentro
da vida da cidade, mas só saíam para comer num sinistro restaurante a quilo, de
fórmica rosa e amarela.
Um dia, nasceu-me a primeira filha. Foi um momento de vida e luz mas,
logo depois, meu pai caiu doente, com uma enigmática infecção pulmonar, que não
passava. Médicos se sucediam: tuberculose, enfisema? O quê? Foi uma revolução
cultural no apartamentinho de Copacabana: aquele rei silencioso, de repente,
estava caído no divã, cuspilhando, febre permanente, precisando de ajuda.
Então, a força estava fraca? O pai virara filho? Minha mãe pirou mais ainda,
sem saber lidar com tanto poder que ganhara, tanta liberdade súbita. Eu também
estranhava aquele titã caído. Um dia, o médico decretou: “Está muito anêmico...
Precisa de transfusão de sangue”.
Fui levá-lo à Casa de Saúde S. José, onde minha primeira filha tinha
nascido, pouco antes. Deixei meu pai na cama de um quarto, com a bolsa de
sangue pingando-lhe nas veias e, para evitar o silêncio triste da lenta
transfusão, saí pelos corredores, para dar uma volta sem rumo. De repente, ouço
dois tiros. Sim, dois tiros de revólver. E foi aí que minha vida começou a
mudar. Pela porta do quarto ao lado, olho e vejo dois homens caídos no chão
branco de fórmica, boiando em duas imensas poças de sangue. Um já estava morto
e o outro agonizava de boca aberta, emitindo um soluço com um assobio
assustador, como um peixe morrendo fora d’água. Enfermeiros acorreram e eu
soube que tinha sido um crime passional. Um médico matara o outro e
suicidara-se em seguida.
Nada mais fora de lugar do que um assassinato no hospital.
Tudo se juntava, meus fantasmas acorriam todos, num clímax de vida e morte. Vi,
espantado, que um deles era o ginecologista que tratava de minha mãe e que
estava ali, boiando no próprio sangue, no hospital onde acabara de nascer minha
filha. A transfusão acabou, as ambulâncias levaram os corpos e ficamos eu e meu
pai assustados, sozinhos ali no quarto. O mundo tinha mudado.
Então, não sei por quê, comecei a sentir um imenso carinho por meu pai,
ali, fraquinho, cabelo branco. Ajudei-o a se arrumar, fechei-lhe o paletó e
voltamos para casa, como cúmplices mudos de um crime, de um jorro de morte que
destruiu nossa melancolia e nos uniu de uma forma misteriosa. Nunca entendi bem
o que aconteceu, mas só sei que não houve mais silêncios tristes entre nós
dois.
Arnaldo Jabor:
Brilhante cronista, jornalista e cineasta, estreou como colunista no jornal O
Globo em 1995. Atualmente também é comentarista da TV Globo.
Via < http://www.aprendicommeupai.com.br/site/oquee/autor/id/42>
Acesso em 22/01/2013 às 18h41min
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