Via Semente - Vida derretida

12:57




Menina pateta, pateta menina, menina atrevida, sapeca e enérgica... Minha mãe sempre utilizava todas essas denominações assim que eu deixava minha casa para trás, e ia à busca de qualquer rua do bairro movimentada e recheada de crianças. Era praxe brincar de vôlei, me arriscar à tarefa ingênua de jogar futebol, me aventurar nas confusões dos jogos de queimada com os amigos, enfim, pular corda e jogar dama...
Entretanto, para além de viver a infância e participar de todas essas atividades que criança adora e se entrega de corpo e alma, eu amava a minha amizade com o sorveteiro João. O Sr João fazia a alegria de todo o bairro com seus deliciosos sabores de sorvete. Os casais jovens e adultos assiduamente compravam bolas coloridas de sorvete e iam à praça namorar. Outros velhinhos também se deleitavam com doce após as missas e ainda batiam aquele papinho com o Sr João. Tão adorável era este Sr humilde, sereno e afetuoso.
Desde menina, aos sete anos de idade, eu conseguia decifrar por meio de um característico olhar, o que significava a amizade. Mesmo pequenina eu sorria muito quando Sr João pausava seus atendimentos e pegava-me no colo me jogando até as nuvens mais belas com os mais belos formatos. As três sagradas moedas que minha mãe, tranquilamente me concedia todos os dias após o colégio, faziam-me ir até um anjo que habitava a Terra. Meu grande e único amigo. Aquele Sr com cabelos tão brancos que aludiam àquilo que ele mesmo fabricava. Os sorvetes de flocos.
Foi em um dia nublado que desertas ficaram as ruas do meu bairro. Foi neste mesmo dia que minha mãe disse-me para pedir ao Sr João que me desse um sorvete para que eu pagasse depois. As moedas haviam acabado. Então segui rumo ao carrinho de meu amigo estranhando as ruas fúnebres que me rodeavam.
De repente encontrei pessoas. Todas agrupadas olhando para o chão, na mesma direção. Vi um carrinho jogado com todos os coloridos sabores derretidos no paralelepípedo. Vi um pedaço dos cabelos brancos do Sr João agora avermelhados por um líquido irreconhecível para mim, naquele momento. Talvez fosse o instante de partida daquele meu anjo protetor. Lágrimas desceram dos meus olhos, mas eu sorria ao mesmo tempo.
Senti um arrepio indescritível quando tocaram meus ombros. Fechei meus olhos e inclinei minha face para aquele céu que agora, despejava gotículas tímidas de chuva. Recebi das mãos daquele anjo lindo, calmo e forte o sorvete mais bonito que já se viu naquele meu bairro. O saboreei como se fosse não a morte de um amigo, mas o nascimento do nosso sólido vínculo. E conforme eu sentia aquele sabor consistente e agradável, eu chorava por uma vida que havia partido sem nenhuma palavra dita.
Mas o Sr João sempre foi adepto a fazer a alegria de seus amigos. Fazia parte de sua personalidade alegre. Ele sussurrou aos meus ouvidos algo que nunca mais deixei esvair da minha memória e do coração:

“A vida é um sorvete, deguste-a antes que derreta. Amo-te!”
Levei aquele gesto singelo e especial até o meu íntimo, e depois disso nunca mais esqueci o real sentido da vida. Sim, os amigos são anjos que se manifestam na Terra...




Às 16h53min do dia 15 de setembro de 2012
Por Lucas Teles

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